segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Meninas da Noite (Gilberto Dimenstein)

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terça-feira, 15 de outubro de 2013

3º ANO A e B - ALGUNS CONTOS DE NELSON RODRIGUES...O ANJO PORNOGRÁFICO!

A Dama da Lotação
Nelson Rodrigues

Às dez horas da noite, debaixo de chuva, Carlinhos foi bater na casa do pai. O velho, que andava com a pressão baixa, ruim de saúde como o diabo, tomou um susto:
— Você aqui? Há essa hora?
E ele, desabando na poltrona, com profundíssimo suspiro:
 — Pois é, meu pai, pois é!
— Como vai Solange? - perguntou o dono da casa. Carlinhos ergueu-se; foi até a janela espiar o jardim pelo vidro. Depois voltou e, sentando-se de novo, larga a bomba:
— Meu pai, desconfio de minha mulher.
Pânico do velho:
— De Solange? Mas você está maluco? Que cretinice é essa?
O filho riu, amargo:
— Antes fosse, meu pai, antes fosse cretinice.  Mas o diabo é que andei sabendo de umas coisas... E ela não é a mesma, mudou muito.
Então, o velho, que adorava a nora, que a colocava acima de qualquer dúvida, de qualquer suspeita, teve uma explosão:
— Brigo com você! Rompo! Não te dou nem mais um tostão!
Patético, abrindo os braços aos céus, trovejou:
— Imagine! Duvidar de Solange!
O filho já estava na porta, pronto para sair; disse ainda:
— Se for verdade o que eu desconfio, meu pai, mato minha mulher! Pela luz que me alumia, eu mato, meu pai!

A SUSPEITA

Casados há dois anos, eram felicíssimos. Ambos de ótima família. O pai dele, viúvo e general, em vésperas de aposentadoria, tinha uma dignidade de estátua; na família de Solange havia de tudo: médicos, advogados, banqueiros e, até, ministro de Estado. Dela mesma, se dizia, em toda parte, que era "um amor" ; os mais entusiastas e taxativos afirmavam: "É um doce-de-coco". Sugeria nos gestos e mesmo na figura fina e frágil qualquer coisa de extraterreno. O velho e diabético general poderia pôr a mão no fogo pela nora. Qualquer um faria o mesmo. E todavia... Nessa mesma noite, do aguaceiro, coincidiu de ir jantar com o casal um amigo de infância de ambos, o Assunção. Era desses amigos que entram pela cozinha, que invadem os quartos, numa intimidade absoluta. No meio do jantar, acontece uma pequena fatalidade: cai o guardanapo de Carlinhos.  Este curva-se para apanhá-lo e, então, vê, debaixo da mesa, apenas isto: os pés de Solange por cima dos de Assunção ou vice-versa. Carlinhos apanhou o guardanapo e continuou a conversa, a três. Mas já não era o mesmo. Fez a exclamação interior: "Ora essa! Que graça!". A angústia se antecipou ao raciocínio. E ele já sofria antes mesmo de criar a suspeita, de formulá-la. O que vira, afinal, parecia pouco, Todavia, essa mistura de pés, de sapatos, o amargurou como um contato asqueroso. Depois que o amigo saiu, correra à casa do pai para o primeiro desabafo. No dia seguinte, pela manhã, o velho foi procurar o filho:
— Conta o que houve, direitinho!
O filho contou. Então o general fez um escândalo:
— Toma jeito! Tenha vergonha! Tamanho homem com essas bobagens!
Foi um verdadeiro sermão. Para libertar o rapaz da obsessão, o militar condescendeu em fazer confidências:
— Meu filho, esse negócio de ciúme é uma calamidade! Basta dizer o seguinte: eu tive ciúmes de tua mãe! Houve um momento em que eu apostava a minha cabeça que ela me traia! Vê se é possível?!

A CERTEZA

Entretanto, a certeza de Carlinhos já não dependia de fatos objetivos. Instalara-se nele. Vira o quê? Talvez muito pouco; ou seja, uma posse recíproca de pés, debaixo da mesa. Ninguém trai com os pés, evidentemente. Mas de qualquer maneira ele estava "certo". Três dias depois, há o encontro acidental com o Assunção, na cidade. O amigo anuncia, alegremente:
— Ontem viajei no lotação com tua mulher.
Mentiu sem motivo:
— Ela me disse.
Em casa, depois do beijo na face, perguntou:
— Tens visto o Assunção?
E ela, passando verniz nas unhas:
— Nunca mais.
— Nem ontem?
— Nem ontem. E por que ontem?
— Nada,
Carlinhos não disse mais uma palavra; lívido, foi no gabinete, apanhou o revólver e o embolsou. Solange mentira! Viu, no fato, um sintoma a mais de infidelidade. A adúltera precisa até mesmo das mentiras desnecessárias. Voltou para a sala; disse à mulher entrando no gabinete:
— Vem cá um instantinho, Solange.
— Vou já, meu filho.
Berrou:
— Agora!
Solange, espantada, atendeu. Assim que ela entrou, Carlinhos fechou a porta, a chave. E mais: pôs o revólver em cima da mesa. Então, cruzando os braços, diante da mulher atônita, disse-lhe horrores. Mas não elevou a voz, nem fez gestos:
— Não adianta negar! Eu sei de tudo! E ela, encostada à parede, perguntava:
— Sabe de que, criatura? Que negócio é esse? Ora veja!
Gritou-lhe no rosto três vezes a palavra cínica! Mentiu que a fizera seguir por um detetive particular; que todos os seus passos eram espionados religiosamente. Até então não nomeara o amante, como se soubesse tudo, menos a identidade do canalha. Só no fim, apanhando o revolver, completou:
— Vou matar esse cachorro do Assunção! Acabar com a raça dele!
A mulher, até então passiva e apenas espantada, atracou-se com o marido, gritando:
— Não, ele não!
Agarrado pela mulher, quis se desprender, num repelão selvagem. Mas ela o imobilizou, com o grito:
— Ele não foi o único! Há outros!

A LOTAÇÃO

Sem excitação, numa calma intensa, foi contando. Um mês depois do casamento, todas as tardes, saia de casa, apanhava o primeiro lotação que passasse. Sentava-se num banco, ao lado de um cavalheiro. Podia ser velho, moço, feio ou bonito; e uma vez - foi até interessante - coincidiu que seu companheiro fosse um mecânico, de macacão azul, que saltaria pouco adiante. O marido, prostrado na cadeira, a cabeça entre as mãos, fez a pergunta pânica:
— Um mecânico?
Solange, na sua maneira objetiva e casta, confirmou:
— Sim.
Mecânico e desconhecido: duas esquinas depois, já cutucara o rapaz: "Eu desço contigo". O pobre-diabo tivera medo dessa desconhecida linda e granfa. Saltaram juntos: e esta aventura inverossímil foi a primeira, o ponto de partida para muitas outras. No fim de certo tempo, já os motoristas dos lotações a identificavam à distância; e houve um que fingiu um enguiço, para acompanhá-la. Mas esses anônimos, que passavam sem deixar vestígios, amarguravam menos o marido. Ele se enfurecia, na cadeira, com os conhecidos. Além do Assunção, quem mais?
Começou a relação de nomes: fulano, sicrano, beltrano... Carlinhos berrou: "Basta! Chega!". Em voz alta, fez o exagero melancólico:
— A metade do Rio de Janeiro, sim senhor!
O furor extinguira-se nele. Se fosse um único, se fosse apenas o Assunção, mas eram tantos! Afinal, não poderia sair, pela cidade, caçando os amantes. Ela explicou ainda que, todos os dias, quase com hora marcada, precisava escapar de casa, embarcar no primeiro lotação. O marido a olhava, pasmo de a ver linda, intacta, imaculada. Como e possível que certos sentimentos e atos não exalem mau cheiro? Solange agarrou-se a ele, balbuciava: "Não sou culpada! Não tenho culpa!". E, de fato, havia, no mais íntimo de sua alma, uma inocência infinita. Dir-se-ia que era outra que se entregava e não ela mesma. Súbito, o marido passa-lhe a mão pelos quadris: — "Sem calça! Deu agora para andar sem calça, sua égua!". Empurrou-a com um palavrão; passou pela mulher a caminho do quarto; parou, na porta, para dizer:
— Morri para o mundo.

O DEFUNTO

Entrou no quarto, deitou-se na cama, vestido, de paletó, colarinho, gravata, sapatos. Uniu bem os pés; entrelaçou as mãos, na altura do peito; e assim ficou. Pouco depois, a mulher surgiu na porta. Durante alguns momentos esteve imóvel e muda, numa contemplação maravilhada. Acabou murmurando:
— O jantar está na mesa.
Ele, sem se mexer, respondeu:
— Pela ultima vez: morri. Estou morto.
A outra não insistiu. Deixou o quarto, foi dizer à empregada que tirasse a mesa e que não faziam mais as refeições em casa. Em seguida, voltou para o quarto e lá ficou. Apanhou um rosário, sentou-se perto da cama: aceitava a morte do marido como tal; e foi como viúva que rezou. Depois do que ela própria fazia nos lotações, nada mais a espantava. Passou a noite fazendo quarto. No dia seguinte, a mesma cena. E só saiu, à tarde, para sua escapada delirante, de lotação. Regressou horas depois. Retomou o rosário, sentou-se e continuou o velório do marido vivo.



O texto acima, extraído do livro "A vida como ela é...", Companhia das Letras - São Paulo, 1992, pág. 219, é um de seus mais famosos contos, tendo sido tendo sido adaptado para o cinema com grande sucesso.
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Os noivos
Nelson Rodrigues

Quando Salviano começou a namorar Edila, o pai o chamou:

— Senta, meu filho, senta. Vamos bater um papo.

Ele obedeceu:

— Pronto, papai. 

O velho levantou-se. Andou de um lado para outro e senta de novo:

— Quero saber, de ti, o seguinte: esse teu namoro é coisa séria? Pra casar?

Vermelho, respondeu:

— Minhas intenções são boas.

O outro esfrega as mãos.

— Ótimo! Edila é uma moça direita, moça de família. E o que eu não quero para minha filha, não desejo para a filha dos outros. Agora, meu filho, vou te dar um conselho.

Salviano espera. Apesar de adulto, de homem-feito, considerava o pai uma espécie de Bíblia. O velho, que estava sentado, ergue-se; põe a mão no ombro do filho:

— O grande golpe de um namorado, sabe qual é? No duro? — E baixa a voz: — É não tocar na pequena, não tomar certas liberdades, percebeu?
Assombro de Salviano: "Mas, como? Liberdades, como?".

E o pai:

— Por exemplo: o beijo! Se você beija sua namorada a torto e a direito, o que é que acontece? Você enjoa, meu filho. Batata: enjoa! E quando chega o casamento, nem a mulher oferece novidades para o homem, nem o homem para a mulher. A lua-de-mel vai-se por água abaixo. Compreende?

Abismado de tanta sabedoria, admitiu:

— Compreendi.

A SOMBRA PATERNA

Na tarde seguinte, quando se encontrou com a menina, tratou de resumir a conversa da véspera. Terminou, com um verdadeiro grito de alma:

— Muito bacana, o meu pai! Tu não achas?

Edila, também numa impressão profunda, conveio: "Acho”.

— Concordas?

Foi positiva: 

— Concordo.

Pouco antes de se despedir, Salviano batia no peito:

— Dizem que ninguém é infalível. Pois eu vou te dizer negócio: meu pai é infalível, percebeu? Infalível, no duro

O BEIJO

Nesse dia, coincidiu que a mãe de Edila também a doutrinasse sobre as possibilidades ameaçadoras de qualquer namoro. E insistiu, com muito empenho, sobre um ponto que considerava importantíssimo:

— Cuidado com o beijo na boca! O perigo é o beijo na boca! 

A garota, espantada,protestou 

— Ora, mamãe!

E a velha: 

— Ora o quê? É isso mesmo! Sem beijo não há nada, está ,.tudo muito bem. OK. E com beijo pode acontecer o diabo. Você é muito menina e talvez não perceba certas coisas. Mas pode ficar certa: tudo que acontece de ruim, entre um homem e uma mulher, começa num beijo!

O IDÍLIO

Foi um namoro tranqüilo, macio, sem impaciências, arrebatamentos. Sob a inspiração paterna, ele planificou o romance, de alto a baixo, sem descurar de nenhum detalhe. Antes de mais nada, houve o seguinte acordo:

— Eu não toco em ti até o dia do casamento. 

Edila pergunta:

— E nem me beija?

Enfiou as duas mãos nos bolsos:

— Nem te beijo. OK? 

Encarou-o, serena:

— OK.

Dir-se-ia que este assentimento o surpreendeu. Insinua:

— Ou será que você vai sentir falta?

— De quê?

E Salviano, lambendo os beiços:

— Digo falta de beijos e, enfim, de carinho.

Sorriu, segura de si:

— Não. Estou cem por cento com teu pai. Acho que teu pai está com a razão.

Salviano não sabe o que dizer. Edila continua, com o seu jeito tranqüilo:

— Sabe que essas coisas não me interessam muito? Eu acho que não sou como as outras. Sou diferente. Vejo minhas amigas dizerem que beijo é isso, aquilo e aquilo outro. Fico boba! E te digo mais: eu tenho, até, uma certa repugnância. Olha como eu estou arrepiada, olha, só de falar nesse assunto!

O VELHO

Desde menino, Salviano se habituara a prestar contas quase diárias ao pai, de suas idéias, sentimentos e atos. O velho, que se chamava Notário, ouvia e dava os conselhos que cada caso comportava. Durante todo o namoro com Edila, seu Notário esteve, sempre, a par das reações do filho e da futura nora. Salviano, ao terminar as confidências, queria saber: "Que tal, papai?". Seu Notário apanhava um cigarro, acendia-o e dava seu parecer, com uma clarividência que intimidava o rapaz:

— Já vi que essa menina tem o temperamento de uma esposa cem por cento. A esposa deve ser, mal comparando, e sob certos aspectos, um paralelepípedo. Essas mulheres que dão muita importância à matéria não devem casar. A esposa, quanto mais fria, mais acomodada, melhor!

Salviano retransmitia, tanto quanto possível, para a namorada, as reflexões paternas. Edila suspirava: "Teu pai é uma simpatia!". De vez em quando, o rapaz queria esquecer as lições que recebia em casa. Com uma salivação intensa, o olhar rutilante, tentava enlaçar a pequena. Edila, porém, era irredutível; imobilizava-o:

— Quieto!

Ele recuava:

— Tens razão!

CATÁSTROFE

Um dia, porém, o dr. Borborema, que era médico de Edila e família, vai procurar Salviano no emprego. Conversam no corredor. O velhinho foi sumário: "Sua noiva acaba de sair do meu consultório. Para encurtar conversa: ela vai ser mãe!". Salviano recua, sem entender:

— Mãe?!...

E o outro, balançando a cabeça: "Por que é que vocês não esperaram, carambolas? Custava esperar?". Salviano travou-lhe o braço, rilhava os dentes: "De quantos meses?". Resposta: "Três". Dr. Borborema já se despedia: "O negócio, agora, já sabe: é apressar o casamento. Casar antes que dê na vista". Petrificado, deixou o médico ir. No corredor do emprego, apertava a cabeça entre as mãos: "Não é possível! Não pode ser!". Meia hora depois, desembarcava e invadia, alucinado, a casa do pai. Arremessou-se nos braços de seu Notário, aos soluços.

— Edila está nessas e nessas condições, meu pai! — E, num soluço mais,fundo, completa: — E não fui eu! Juro que não fui eu!

MISERICÓRDIA

Foi uma conversa que se alongou por toda uma noite. No seu desespero inicial, ele berrava: "Cínica! Cínica!". E soluçava: "Nunca teve um beijo meu, que sou seu noivo, e vai ter o filho do outro!". O pai, porém, conseguiu, após poucos, aplacá-lo. Sustentou a tese de que todos nós, afinal de contas, somos falíveis e, particularmente, as mulheres: "Elas são de vidro", afirmava. Alta madrugada, o pobre-diabo pergunta: "E eu? Devo fazer o quê?". Justiça se lhe faça - o velho foi magnífico: "Perdoar. Perdoa, meu filho, perdoa!". Quis protestar: "Ela merece um tiro!". Mais que depressa, seu Notário atalha:
— Ela, não, nunca! Ele, sim! Ele merece!

— Quem?

Baixa a voz: "O pai da criança! Esse filho não caiu do céu, de pára-quedas! Há um culpado". Pausa. Os dois se entreolham. Seu Notário segura o filho pelos dois braços:

— Antes de ti, Edila teve um namorado. Deve ter sido ele. Se fosse comigo, eu matava o cara que...

Ergue-se, transfigurado, quase eufórico: "Tem razão, meu pai! O senhor sempre tem razão!".

O INOCENTE

Pôde, assim; desviar da noiva o seu ódio De manhã, passou pela casa de Edila. Com apavorante serenidade, em voz baixa, pediu o nome do culpado. Diante dele, a garota torcia e destorcia as mãos: "Não digo! Tudo, menos isso!". Ele sugeria, desesperado: "Foi o Pimenta?". O Pimenta era o antigo namorado de Edila. Ela dizia: "Não sei, não sei!". Salviano saiu dali certo. Procurou o outro, que conhecia de nome e de vista. Antes que o Pimenta pudesse esboçar um gesto, matou-o, com três tiros, à queima-roupa. E fez mais. Vendo um homem, um semelhante, agonizar aos seus pés, com um olhar de espanto intolerável, ele virou a arma contra si mesmo e estourou os miolos. Mais tarde, desembaraçado o corpo, foi instalada a câmara-ardente na casa paterna. Alta madrugada, havia, na sala, três ou quatro pessoas, além da noiva e de seu Notário. Em dado momento, o velho bate no ombro de Edila e a chama para o corredor. E, lá, ele, sem uma palavra, aperta entre as mãos o rosto da pequena e a beija na boca, com loucura, gana. Quando se desprendem, seu Notário, respirando forte, baixa a voz:

— Foi melhor assim. Ninguém desconfia. Ótimo.

Voltaram para a sala e continuaram o velório.

Com o texto acima, extraído do livro "A vida como ela é...", Companhia das Letras - São Paulo, 1992, pág. 214., o Releituras homenageia seu ator, que no dia 23-08-2002 completaria 90 anos de idade.
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Delicado
Nelson Rodrigues

Primeiro, o casal teve sete filhas! O pai, que se chamava Macário, coçava a cabeça, numa exclamação única e consternada: 

 — Papagaio!

Era um santo e obstinado homem. Sua utopia de namorado fora um simples e exíguo casal de filhos, um de cada sexo. Veio a primeira menina, mais outra, uma terceira, uma quarta e outro qualquer teria desistido, considerado que a vida encareceu muito. Mas seu Macário incluía entre seus defeitos o de ser teimoso. Na quinta filha, pessoas sensatas aconselharam: "Entrega os pontos, que é mais negócio!". Seu Macário respirou fundo:

— Não, nunca! Nunca! Eu não sossego enquanto não tiver um filho homem!

Por sorte, casara-se com uma mulher; d. Flávia, que era, acima de tudo, mãe. Sua gravidez transcorria docemente, sem enjôos, desejos, tranqüila, quase eufórica. Quanto ao parto propriamente, era outro fenômeno estranhíssimo. Punha os filhos no mundo sem um gemido, sem uma careta. O marido sofria mais. Digo "sofria mais" porque o acometia, nessas ocasiões, uma dor de dente apocalíptica, de origem emocional. O caso dava o que pensar, pois Macário tinha na boca uma chapa dupla. Quando nasceu a sétima filha, o marido arrancou de si um suspiro em profundidade; e anunciou:

— Minha mulher, agora nós vamos fazer a última tentativa!

NOVO PARTO 

No dia que d. Flávia ia ter o oitavo filho, os nervos de seu Macário estavam em pandarecos. Veio, chamada às pressas, a parteira, que era uma senhora de cento e trinta quilos, baixinha e patusca. A parteira espiou-a com uma experiência de mil e setecentos partos e concluiu: "Não é pra já!". Ao que, mais do que depressa, replicou seu Macário:

— Meus dentes estão doendo!

E, de fato, o grande termômetro, em qualquer parto da esposa, era a sua dentadura. A parteira duvidou, mas, daí a cinco minutos, foi chamada outra vez. Houve um incidente de última hora. É que a digna profissional já não sabia onde estava a luva. Procura daqui, dali, e não acha. Com uma tremenda dor de dentes postiços, seu Macário teve de passar-lhe um sabão:

— Pra que luvas, carambolas? Mania de luvas!

EUSEBIOZINHO

Assim nasceu o Eusebiozinho, no parto mais indolor que se possa imaginar. Uma prima solteirona veio perguntar, sôfrega: "Levou algum ponto?". Ralharam:

— Sossega o periquito!

O fato é que seu Macário atingira, em cheio, o seu ideal de pai. Nascido o filho e passada a dor da chapa dupla, o homem gemeu: "Tenho um filho homem. Agora posso morrer!". E, de fato, quarenta e oito horas depois, estava almoçando, quando desaba com a cabeça no prato. Um derrame fulminante antes da sobremesa. Para d. Flávia foi um desgosto pavoroso. Chorou, bateu com a cabeça nas paredes, teve que ser subjugada. E, na realidade, só sossegava na hora de dar o peito. Então, assoava-se e dizia à pessoa mais próximo:

— Traz o Eusebiozinho que é hora de mamar!

FLOR DE RAPAZ 

Eusebiozinho criou-se agarrado às saias da mãe, das irmãs, das tias, das vizinhas. Desde criança, só gostava de companhias femininas. Qualquer homem infundia-lhe terror. De resto, a mãe e as irmãs o segregavam dos outros meninos. Recomendavam: "Brinca só com meninas, ouviu? Menino diz nomes feios!". O fato é que, num lar que era uma bastilha de mulheres, ele atingiu os dezesseis anos sem ter jamais proferido um nome feio, ou tentado um cigarro. Não se podia desejar maior doçura de modos, idéias, sentimentos. Era adorado em casa, inclusive pelas criadas. As irmãs não se casavam, porque deveres matrimoniais viriam afastá-las do rapaz. E tudo continuaria assim, no melhor dos mundos se, de repente, não acontecesse um imprevisto. Um tio do rapaz vem visitar a família e pergunta:

— Você tem namorada?
— Não.
— Nem teve? 
— Nem tive. 

Foi o bastante. O velho quase pôs a casa abaixo. Assombrou aquelas mulheres transidas com os vaticínios mais funestos: "Vocês estão querendo ver a caveira do rapaz?". Virou-se para d. Flávia:

— Isso é um crime, ouviu?, é um crime o que vocês estão fazendo com esse rapaz! Vem cá, Eusébio, vem cá! Implacável, submeteu o sobrinho a uma exibição. Apontava:

—  Isso é jeito de homem, é? Esse rapaz tem que casar, rápido!

PROBLEMA MATRIMONIAL   

Quando o tio despediu-se, o pânico estava espalhado na família. Mãe e filhas se entreolharam: "É mesmo, é mesmo! Nós temos sido muito egoístas! Nós não pensamos no Eusebiozinho!". Quanto ao rapaz, tremia num canto. Ressentido ainda com a franqueza bestial do tio, bufou:

— Está muito bem assim!

A verdade é que já o apavorava a perspectiva de qualquer mudança numa vida tão doce. Mas a mãe chorou, replicou: "Não, meu filho. Seu tio tem razão. Você precisa casar, sim". Atônito, Eusebiozinho olha em torno. Mas não encontrou apoio. Então, espavorido, ele pergunta:

— Casar pra quê? Por quê? E vocês? — Interpela as irmãs: — Por que vocês não se casaram?

A resposta foi vaga, insatisfatória:

— Mulher é outra coisa. Diferente.

A NAMORADA

Houve, então, uma conspiração quase internacional de mulheres. Mãe, irmãs, tias, vizinhas desandaram a procurar uma namorada para o Eusebiozinho. Entre várias pequenas possíveis, acabaram descobrindo uma. E o patético é que o principal interessado não foi ouvido, nem cheirado. Um belo dia, é apresentado a Iracema. Uma menina de dezessete anos, mas que tinha umas cadeiras de mulher casada. Cheia de corpo, um olhar rutilante, lábios grossos, ela produziu, inicialmente, uma sensação de terror no rapaz. Tinha uns modos desenvoltos que o esmagavam.

E começou o idílio mais estranho de que há memória. Numa sala ampla da Tijuca, os dois namoravam. Mas jamais os dois ficaram sozinhos. De dez a quinze mulheres formavam a seleta e ávida assistência do romance. Eusebiozinho, estatelado numa inibição mortal e materialmente incapaz de segurar na mão de Iracema. Esta, por sua vez, era outra constrangida. Quem deu remédio à situação, ainda uma vez, foi o inconveniente e destemperado tio. Viu o pessoal feminino controlando o namoro. Explodiu: "Vocês acham que alguém pode namorar com uma assistência de Fla-Flu? Vamos deixar os dois sozinhos, ora bolas!". Ocorreu, então, o seguinte: sozinha com o namorado, Iracema atirou-lhe um beijo no pescoço. O desgraçado crispou-se, eletrizado:

— Não faz assim que eu sinto cócegas!

O VESTIDO DE NOIVA

Começaram os preparativos para o casamento. Um dia, Iracema apareceu, frenética, desfraldando uma revista. Descobrira uma coisa espetacular e quase esfregou aquilo na cara do Eusebiozinho: "Não é bacana esse modelo?". A reação do rapaz foi surpreendente.

Se Iracema gostara do figurino, ele muito mais. Tomou-se de fanatismo pela gravura:

— Que beleza, meu Deus! Que maravilha!

Houve, aliás, unanimidade feroz. Todos aprovaram o modelo que fascinava Iracema. Então, a mãe e as irmãs do rapaz resolveram dar aquele vestido à pequena. E mais, resolveram elas mesmas confeccionar. Compraram metros e metros de fazenda. Com um encanto, um élan tremendo, começaram a fazer o vestido. Cada qual se dedicava à sua tarefa como se cosesse para si mesma. Ninguém ali, no entanto, parecia tão interessado quanto Eusebiozinho. Sentava-se, ao lado da mãe e das irmãs, num deslumbramento: "Mas como é bonito! Como é lindo!". E seu enlevo era tanto que uma vizinha, muito sem cerimônia, brincou:

— Parece até que é Eusebiozinho que vai vestir esse negócio!

0 LADRÃO

Uns quatro dias antes do casamento, o vestido estava pronto. Meditativo, Eusebiozinho suspirava: "A coisa mais bonita do mundo é uma noiva!". Muito bem. Passa-se mais um dia. E, súbito, há naquela casa o alarme: "Desapareceu o vestido da noiva!". Foi um tumulto de mulheres. Puseram a casa de pernas para o ar, e nada. Era óbvia a conclusão: alguém roubou!  E como faltavam poucos dias para o casamento sugeriram à desesperada Iracema: "O golpe é casar sem vestido de noiva!". Para quê? Ela se insultou:

— Casar sem vestido de noiva, uma pinóia! Pois sim!

Chamaram até a polícia. O mistério era a verdade, alucinante: Quem poderia ter interesse num vestido de noiva? Todas as investigações resultaram inúteis. E só descobriram o ladrão quando dois dias depois, pela manhã, d. Flávia acorda e dá com aquele vulto branco, suspenso no corredor. Vestido de noiva, com véu e grinalda — enforcara-se Eusebiozinho, deixando o seguinte e doloroso bilhete: "Quero ser enterrado assim".

O texto acima foi extraído do livro "A vida como ela é...", Companhia das Letras- São Paulo, 1992, pág. 39.

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O Pediatra
Nelson Rodrigues

Saiu do telefone e anunciou para todo o escritório:
— Topou! Topou!
Foi envolvido, cercado por três ou quatro companheiros. O Meireles cutuca:
— Batata?
Menezes abre o colarinho: — "Batatíssima!". Outro insiste:
— Vale? Justifica?
Fez um escândalo:
— Se vale? Se justifica? Ó rapaz! É a melhor mulher do Rio de Janeiro! Casada e te digo mais: séria pra chuchu!
Alguém insinuou: — "Séria e trai o marido?". Então, o Menezes improvisou um comício em defesa da bem-amada:
— Rapaz! Gosta de mim, entende? De mais a mais, escuta: o marido é uma fera! O marido é uma besta!
Ao lado, o Meireles, impressionado, rosna:
— Você dá sorte com mulher! Como você nunca vi! — E repetia, ralado de inveja: — Você tem uma estrela miserável!

O AMOR IMORTAL

Há três ou quatro semanas que o Menezes falava num novo amor imortal. Contava, para os companheiros embasbacados: — "Mulher de um pediatra, mas olha: — um colosso! ". Queriam saber: — "Topa ou não topa?". Esfregava as mãos, radiante:
— Estou dando em cima, salivando. Está indo.
Todas as manhãs, quando o Menezes pisava no escritório, os companheiros o recebiam com a pergunta: — "E a cara?". Tirando o paletó, feliz da vida, respondia:
— Está quase. Ontem, falamos no telefone quatro horas! Os colegas pasmavam para esse desperdício: - "Isso não é mais cantada, é ...E o vento levou". Meireles sustentava o princípio que nem a Ava Gardner, nem a Cleópatra justificam quatro horas de telefone. Menezes protestava:
— Essa vale! Vale, sim senhor! Perfeitamente, vale! E, além disso, nunca fez isso! É de uma fidelidade mórbida! Compreendeu? Doentia!
E ele, que tinha filhos naturais em vários bairros do Rio de Janeiro, abandonara todos os outros casos e dava plena e total exclusividade à esposa do pediatra. Abria o coração no escritório:
— Sempre tive a tara da mulher séria! Só acho graça em mulher séria!
Finalmente, após quarenta e cinco dias de telefonemas desvairados, eis que a moça capitula. Toda a firma exulta. E o Menezes, passando o lenço no suor da testa, admitia: — "Custou, puxa vida! Nunca uma mulher me resistiu tanto!". E, súbito, o Menezes bate na testa:
— É mesmo! Está faltando um detalhe! O apartamento! Agarra o Meireles pelo braço: — "Tu emprestas o teu?". O outro tem um repelão pânico:
— Você é besta, rapaz! Minha mãe mora lá! Sossega o periquito!
Mas o Menezes era teimoso. Argumenta:
— Escuta, escuta! Deixa eu falar. A moça é séria. Séria pra burro. Nunca vi tanta virtude na minha vida. E eu não posso levar para uma baiúca. Tem que ser,olha: — apartamento residencial e familiar. É um favor de mãe pra filho caçula.
O outro reagia: — "E minha mãe? Mora lá, rapaz!". Durante umas duas horas, pediu por tudo:
— Só essa vez. Faz o seguinte: — manda a tua mãe dar uma volta. Eu passo lá duas horas no máximo!
Tanto insistiu que, finalmente, o amigo bufa:
— Vá lá! Mas escuta: — pela primeira e última vez! Aperta a mão do companheiro:
— És uma mãe!

DECISÃO

Pouco depois, Menezes ligava para o ser amado: — Arranjei um apartamento genial.
Do outro lado, aflita, ela queria saber tudinho: "Mas é como, hein?". Febril de desejo, deu todas as explicações: — "Um edifício residencial, na rua Voluntários. Inclusive, mora lá a mãe de um amigo. Do apartamento, ouve-se a algazarra das crianças". Ela, que se chamava Ieda, suspira:
— Tenho medo! Tenho medo!
Ficou tudo combinado para o dia seguinte, às quatro da tarde. No escritório, perguntaram:
— E o pediatra?
Menezes chegou a tomar um susto. De tanto desejar a mulher, esquecera completamente o marido. E havia qualquer coisa de pungente, de tocante, na especialidade do traído, do enganado. Fosse médico de nariz e garganta, ou simplesmente de clínica geral, ou tisiólogo, vá lá. Mas pediatra! O próprio Menezes pensava: — "Enquanto o desgraçado trata de criancinhas, é passado pra trás!". E, por um momento, ele teve remorso de fazer aquele papel com um pediatra. Na manhã seguinte, com a conivência de todo o escritório, não foi ao trabalho. Os colegas fizeram apenas uma exigência: — que ele contasse tudo, todas as reações da moça. Ele queria se concentrar para a tarde de amor. Tomou, como diria mais tarde, textualmente, "um banho de Cleópatra". A mãe, que era uma santa, emprestou-lhe o perfume. Cerca do meio-dia, já pronto e de branco, cheiroso como um bebê, liga para o Meireles:
— Como é? Combinaste tudo com a velha?
— Combinei. Mamãe vai passar a tarde em Realengo. Menezes trata de almoçar. "Preciso me alimentar bem", era o que pensava. Comeu e reforçou o almoço com uma gemada. Antes de sair de casa, ligou para Ieda:
— Meu amor, escuta. Vou pra lá. E ela:
— Já?
Explica:
— Tenho que chegar primeiro. E olha: vou deixar a porta apenas encostada. Você chega e empurra. Não precisa bater. Basta empurrar.
Geme: — "Estou nervosíssima!".
E ele, com o coração aos pinotes:
— Um beijo bem molhado nesta boquinha.
— Pra ti também.

ESPANTO

Às três e meia, ele estava no apartamento, fumando um cigarro atrás do outro. Às quatro, estava junto à porta, esperando. Ieda só apareceu às quatro e meia. Ela põe a bolsa em cima da mesa e vai explicando:
— Demorei porque meu marido se atrasou.
Menezes não entende: — "Teu marido?", e ela:
— Ele veio me trazer e se atrasou. Meu filho, vamos que eu não posso ficar mais de meia hora. Meu marido está lá embaixo, esperando.
Assombrado, puxa a pequena: — "Escuta aqui. Teu marido? Que negócio é esse? Está lá embaixo! Diz pra mim: — teu marido sabe?". Ela começou:
— Desabotoa aqui nas costas. Meu marido sabe, sim. Desabotoa. Sabe, claro.
Desatinado, apertava a cabeça entre as mãos: — "Não é possível! Não pode ser! Ou é piada tua?". Já impaciente, Ieda teve de levá-lo até a janela. Ele olha e vê, embaixo, obeso e careca, o pediatra. Desesperado, Menezes gagueja: — "Quer dizer que...". E, continua: "Olha aqui. Acho melhor a gente desistir. Melhor, entende? Não convém. Assim não quero".
Então, aquela moça bonita, de seio farto, estende a mão:
— Dois mil cruzeiros. É quanto cobra o meu marido. Meu marido é quem trata dos preços. Dois mil cruzeiros.
Menezes desatou a chorar.

O texto acima foi extraído do livro "
A vida como ela é...", Companhia das Letras- São Paulo, 1992, pág. 12.


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A Coroa de Orquídeas –
  Nelson Rodrigues

Quando a mulher entrou em agonia, ele caiu em crise. Ati­rou-se em cima da cama, aos soluços. Foi agarrado, arrastado. Debatia-se nos braços dos parentes e vizinhos; esperneava. E houve um momento em que, no seu desvario de quase viúvo, cravou os dentes numa das mãos próximas. A vítima uivou:
— Ui!
Então, na sala, cercado e contido, chorou alto, chorou for­te. Seu gemido grosso atravessava o espaço e era ouvido no fim da rua. Enquanto isso, o amigo mordido, na cozinha, exibia a mão: “Tirou um naco de carne!”. Alguém perguntou baixo, com admiração: “Mas os dentes dele não são postiços?”. Eram. E, em torno, houve um espanto profundo. Ninguém compreen­dia que um indivíduo que usava na boca uma chapa dupla pu­desse morder com tanta ferocidade e resultado. E, súbito, veio espavorido lá de dentro um irmão da moribunda. Pousou a mão no ombro do Juventino. Pigarreia e soluça:
— Morreu.
Várias pessoas espichavam o pescoço para ver as reações. Primeiro, Juventino levantou-se, esbugalhando os olhos. Depois que assimilou o fato, desprendeu-se de vários braços, num repelão. Dava socos no próprio peito e estrebuchava:
— Me dêem um revólver! Quero meter uma bala na cabeça!
DOR AUTÊNTICA
Essa dor agressiva e autêntica arrepiava. E havia, dissemi­nado no ar, o medo de que o infeliz ferrasse os dentes em algu­ma mão ainda intacta. Durou o paroxismo de dez a quinze minutos. Por fim, a própria exaustão física serviu de sedativo. Ge­mia baixo. Mas, quando o sogro o convocou para ver a esposa, recuou como diante de uma blasfêmia. Num tremor de maleita, rilhando os dentes, soluçou:
— Não vou! Não quero!
Era a sua antiga e irredutível pusilanimidade diante da mor­te. Desde criança tinha medo de qualquer defunto, fosse conhe­cido ou desconhecido, parente próximo ou remoto. A idéia de ver a mulher morta o arrepiava. Defendia-se: “Não!”. E corri­giu: “Agora, não!”. Com o coração disparado, não pôde evitar a seguinte e quase irreverente reflexão: “Por que não pintam os cadáveres?”. Perguntaram:
— O enterro vai sair daqui?
Virou-se:
— Claro!
Um dos vizinhos, o mesmo que fora mordido na mão, va­cila e sugere:
— Não será mais negócio capelinha?
— Por quê?
E o outro, alvar:
— É mais prático. Mais cômodo.
Então, o viúvo exaltou-se. Enfiou o dedo na cara do vizinho:
— Considero um desaforo essa mania de capelinha! É uma falta de respeito! Ora veja!
SAUDADE
Um vizinho e um cunhado partiram, de táxi, para tratar do atestado de óbito e do enterro. Então, andando de um lado pa­ra o outro, numa excitação de possesso, Juventino surpreendeu e confundiu os presentes com uma série de confidências, legí­timas umas, extravagantes outras. Na sua euforia retrospectiva, deblaterava:
— Nunca houve marido tão feliz como eu! Duvido!
Elogiou a mulher de alto a baixo, chamou-a de “anjo dos anjos”, “flor das flores”. E, súbito, diante dos vizinhos atôni­tos e maravilhados, baixa a voz:
— Era tão séria que namorou um ano comigo, noivou dois e só topou beijo na boca depois do casamento! Quer dizer, mu­lher batata!
Havia um aspecto de sua vida conjugai que ainda o envai­decia: o recato da mulher. Sempre conservaria, perante o mari­do, um mínimo de cerimônia. Cutucou o vizinho e segredou: “Teve pudor de mim até o último momento!”. Pausa, arqueja e conclui:
— Nunca tomou injeção que não fosse no braço!
Parecia evidente que esse pudor frenético o deleitava, ain­da agora. Numa brusca cólera, desafiou os circunstantes:
— Isso é que era mulher no duro, cem por cento! O resto é conversa fiada!
CÂMARA-ARDENTE
As providências de ordem prática estavam sendo tomadas. Uma hora depois ou pouco mais, apareceram os funcionários da empresa funerária. Armara-se a câmara-ardente na sala de vi­sitas. Em dado momento, o viúvo teve de levantar-se para aten­der o telefone. Era o cunhado. Estava na casa de flores e deseja­va fazer uma consulta até certo ponto delicada. Perguntou:
— Tua coroa pode ser de orquídeas?
Admirou-se no telefone:
— Pode. Por que não?
Pigarreia o cunhado:
— Mas é puxado!
— Quanto?
O outro disse uma quantia. Juventino esbravejou:
— Ladrões!
Vacila. Lembra-se de que a doença da mulher já lhe custara uma fortuna; contraíra dívidas, tinha na farmácia uma conta estratosférica. Acabou optando por outra solução:
— Vamos fazer o seguinte; orquídea é uma flor besta, so­fisticada. Arranja uma coroa mais em conta.
Do outro lado da linha, veio a pergunta: “Qual é a dedica­tória?”. Hesita novamente. Decide-se:
— Põe assim: “À Ismênia, saudade eterna do teu Juventino”.
ÀS COROAS
Do telefone, veio para a sala. Até então, fiel à própria co­vardia, não fora espiar o rosto da mulher no caixão. E o pior é que seu medo estava mesclado de curiosidade. Costumava dizer, numa frase rebuscadíssima, que o verdadeiro rosto da mu­lher aparece só no amor ou na morte. Mas o diabo era o seu preconceito contra a morte. Acendendo um cigarro, pensava: “Os defuntos são muito feios!”. Por outro lado, ocorria-lhe que, com ou sem pusilanimidade, teria de beijar a esposa antes de sair o enterro. Na sua meditação de viúvo, cogitou de uma so­lução que lhe parecia praticável, qual seja: a de beijar sem ver, isto é, beijar fechando os olhos.
Mais uns quarenta minutos e começam a chegar as coroas. Uma das primeiras foi a sua. Correu, sôfrego; leu a legenda fú­nebre, em letras douradas. As orquídeas tinham sido substituí­das pelas dálias. E Juventino, recuando dois passos, considera­va o efeito. Não pôde furtar-se a um sentimento de satisfação. Disse de si para si: “Bacana!”. À medida que iam chegando mais flores, ele se convencia de que a sua coroa não fazia feio no meio das outras. Pelo contrário. Se não fosse a melhor, podia figurar entre as melhores.
SURPRESA
Às onze horas, a casa estava apinhada. Tinha vindo gente até de Vigário Geral. O inconsolável viúvo era abraçado por uma série de parentes, inclusive alguns que ele julgava mortos e en­terrados. Às onze e meia, Juventino passa por uma nova crise. E uma coisa o atribulava de maneira particular e dolorosíssima: a doença da mulher. Aos soluços, interpelava os presentes:
— Como é possível morrer de pneumonia? Se fosse cân­cer, vá lá. Mas pneumonia! — Virou-se para um vizinho; estre­bucha: — Sabe que eu estou desconfiado que penicilina é um conto-do-vigário?
Neste momento, todos os olhos se voltaram para a direção da porta. Acabava de entrar uma coroa. Era, porém, uma coisa realmente insólita e gigantesca. Dir-se-ia uma coroa de chefe de Estado, de rainha ou, no mínimo, de ministro. Toda feita de or­quídeas, ofuscou automaticamente as demais. Atônito, Juventi­no balbuciou: “Parei!”. Trôpego, a boca torcida e já distraído da própria dor, veio rompendo os grupos, no seu espanto e na sua curiosidade. E, com a mão trêmula, desenrolou a fita. Sole­trou, a meia voz, para si mesmo: “À inesquecível Ismênia, com todo o amor, de Otávio”.
Antes de mais nada, aquele “inesquecível” foi nele uma es­pécie de punhalada material. Ocorria-lhe uma reminiscência ci­nematográfica: Rebecca, a mulher inesquecível. Virou-se para os presentes, que pareciam também impressionadíssimos. Perguntava de um para outro:
— Otávio? Quem é Otávio? Vocês conhecem algum Otávio?
Não, ninguém conhecia. Mas ele corria, um por um, todos os parentes: “Mas como é possível? Que negócio é esse?”.
DRAMA
A obsessão passou a dominá-lo: voltou para perto da co­roa e leu, releu a legenda. Apertava a cabeça entre as mãos: “To­do amor por quê?”. Concentrou-se. Procurava descobrir, no fun­do da memória, alguém que tivesse este nome, E uma coisa o enfurecia: aquela coroa espetacular, tão mais bonita e até mais cara que as outras. Fazia seus cálculos, em voz alta:
— O cara que mandou isto gastou os tubos. E por quê, meu Deus, por quê?
Houve um momento em que o próprio Juventino se jul­gou também um milionário, mas da loucura. Meteu-se num can­to; já não falava mais com ninguém, feroz e incomunicável. Qua­se ao amanhecer, alguém veio oferecer um cafezinho. Saltou: “Vai-te para o diabo que te carregue!”.
Passam-se os minutos, as horas. Todos os que chegam pas­mam para a fabulosa coroa. Finalmente, na hora de fechar o cai­xão, a própria sogra, soluçando, vem chamar o genro: “Você não vai beijar fulana?”. Ergueu-se. Antes, foi ao escritório apa­nhar não sei o quê. Atravessou por entre os parentes e vizinhos. Estava diante do caixão. E, súbito, mete a mão no bolso e… Só viram quando ergueu um punhal e o afundou na defunta, aos berros de:
— Cínica! Cínica!
A lâmina penetrou por entre as duas costelas. E a morta parecia rir.